A 17 de dezembro de 2022, num hospital de Lisboa, Nélida Piñon despedia-se do mundo. O mesmo que a havia recebido de braços abertos, tal era, entre muitas outras virtudes que a notabilizariam, a sua imensa e extraordinária capacidade de «juntar adversários, promover amigos e não amigos, lutar pelo entendimento e difundir, através dos livros e seus autores, uma lição de convivialidade rara», como escreve Lídia Jorge no prefácio deste último e comovente livro da autora.
Numa sublime «linguagem afectiva, por vezes messiânica e litúrgica», a «brasileira e ser melancólico» que buscava «a grandeza em uma formiga», como se referia a si mesma, primeira mulher a presidir à Academia Brasileira de Letras, professora catedrática e talentosa e premiadíssima escritora, revela-nos, em Os Rostos Que Tenho, «um testemunho vital», belo e notável, que reúne cento e quarenta e sete «crónicas de pensamento», abordando temas tão amplos como a eternidade, a rebeldia do coração humano ou o ato «inquietante» da criação.
Chega às livrarias a 26 de outubro.
Aqui se escrevem os lugares do pensamento de Nélida. A literatura, que sempre lhe «sussurrou que valia qualquer sacrifício»; a língua, seu «lar» com quem era «nômade, senhora de casulos e páginas por preencher»; a vaidade e o feminismo, que a autora absorveu «praticamente na adolescência e sem esforço»; a arte e a sua «grandiosa capacidade de «implantar no espírito criador a semente da inquietude», a infância e o prazer de pensar, a presidência da Academia Brasileira de Letras e a «humanidade em chamas» durante a pandemia de COVID-19.
Mas também aqui se revelam os nomes queridos a Nélida (e tão nossos conhecidos): Homero, a quem, se tivesse a oportunidade, ofereceria «aguardente brasileira com limão e pitada rala de açúcar»; a amiga Clarice Lispector, «mulher universal, com jeito de tigre […] cujo rosto, embora atento, se revestia às vezes de uma neblina que a arrastava para longe»; Rubem Fonseca e a sua obra admirável, «brado à natureza secreta do humano»; Machado de Assis, «primeiro gênio urbano das Américas»; Susan Sontag e o «mestre de tantos» Eduardo Lourenço; Camões, «vate que inaugurou o esplendor da nossa língua» e «que sabia que cada verso cobrava um pedaço do seu corpo, pouco lhe importando o restante do seus membros».
Finalmente, as geografias: o regresso ao Brasil «sob as bênçãos do sol»; a América, «mito que se reproduz em mil outros»; a «luminosa» Lisboa e o solo português, que tanto amava.
Tanto que aqui se reúne, porque tanto era e será, para sempre, Nélida, a mulher que se via «a uma grande mesa, rodeada de muitos risos, brindando à fortuna do porvir».